Cardeal Tolentino Cardeal Tolentino  (Ricardo Perna | JMJ Lisboa 2023)

Cardeal Tolentino: “O ser humano, para viver, precisa de esperança”

O Cardeal José Tolentino de Mendonça concedeu uma entrevista no último dia 14 de fevereiro, véspera do início do Jubileu dos Artistas e do mundo da Cultura, aos meios de comunicação do Vaticano. O L'Osservatore Romano publicou a conversa.

Rosa Bernardo de Pinho e Dulce Araújo Évora - L’Osservatore Romano

«O ser humano, para viver, precisa de esperança. E no mundo contemporâneo, nesta estação histórica complexa que estamos a viver, a esperança é bem ainda mais necessária», afirmou o Cardeal José Tolentino de Mendonça na entrevista concedida na sexta-feira, 14 de fevereiro, véspera do início do Jubileu dos Artistas e do mundo da Cultura, aos meios de comunicação do Vaticano.

Na apresentação do jubileu do mundo da cultura Vossa Eminência afirmou que o «desafio é reanimar a esperança». Em plena pandemia, 2020, escreveu um livro cujo subtítulo é o Poder da esperança. Como pode este ano jubilar dedicado à esperança ser um momento de renovação, ou reanimação, da esperança tanto pessoal como comunitária na atual conjuntura?

Para o ser humano, a esperança não é um acessório, é um bem de primeira necessidade, como o ar, como a água, como o pão. O ser humano, para viver, precisa de esperança. E no mundo contemporâneo, nesta estação histórica complexa que estamos a viver, a esperança é bem ainda mais necessária. Quando a incerteza e os tambores da guerra parecem que ferem a escuta do mundo, os coros da guerra parecem ferir a escuta do mundo. Nós necessitamos de reforço, de suplemento de esperança.

Penso que a arte tem sido, tantas vezes para o ser humano, esse suplemento de esperança, de alento, de ânimo, para continuar a acreditar nesta sua peregrinação, nesta sua peregrinação, nesta sua procura de luz, de verdade, que no fundo nós encontramos no coração de Deus e por isso é tão importante a ligação entre a arte e a espiritualidade, por exemplo.

Como pode o Jubileu dos Artistas e do Mundo da Cultura ser uma oportunidade para promover o encontro entre a Igreja e o mundo cultural? Que mensagem deseja transmitir através deste evento?

Todo o século xx até ao presente foi vivido na relação entre a cultura e a Igreja a partir de binómio de duas palavras, a palavra rotura e a palavra aliança. Rotura porque ao longo dos séculos, sobretudo a partir da modernidade, houve como que um esfriamento das relações. Não diria divórcio, mas esfriamento das relações entre a arte, as artes e a igreja. É como se a Igreja fosse autossuficiente em termos estéticos e não precisasse da arte, mas a arte ao mesmo tempo também desconfiava muito da Igreja e queria ter o seu espaço próprio. Então havia uma rutura, mas também desejo de aliança. O Vaticano ii, o Papa Paulo vi, quando inaugurou a coleção de arte contemporânea nos museus vaticanos, a carta aos artistas de São João Paulo ii, todo o trabalho extraordinário que Bento xvi realizou com o mundo da arte e tudo aquilo de fantástico que o Papa Francisco está fazendo encontrando os artistas, ajuda-nos a compreender que estamos a entrar numa época nova da História, no sentido que a nossa relação da Igreja com a arte já não é tanto a tensão entre rutura e aliança, mas é a construção de uma amizade. O Papa Francisco disse isso quando encontrou os artistas na Capela Sistina há dois anos atrás. Disse, nós somos amigos. E quando o ano passado foi o primeiro Papa a visitar a Bienal de Veneza, ele disse uma coisa muito curiosa. Eu vim aqui, a um lugar das artes, para devolver a vossa visita ao Vaticano, porque os amigos visitam-se, frequentam-se. Então é esta amizade que a igreja quer cimentar com o mundo das artes, frequentando-se ou escutando-se, criando reciprocidades e ao mesmo tempo fazendo projetos comuns. Uma inspiração do Papa Francisco é de facto que a igreja e as artes contemporâneas possam andar juntas a lugares humanos sensíveis, por exemplo, as prisões, o projeto do pavilhão do Vaticano na Bienal de Veneza, mas também esta galeria que agora abrimos para o Jubileu dos Artistas, a primeira exposição da galeria são os rostos da comunidade carcerária de Regina Coeli. Então há uma relação de amizade que neste momento é a visão que o Papa Francisco nos pede para desenvolver.

Como pretende a Igreja continuar o seu diálogo com o mundo da arte e da cultura numa conjuntura histórica em que a separação entre fé e cultura parece cada vez mais marcada?

A arte traz perguntas importantes à igreja, tira-nos da zona de conforto. Mas também a igreja faz perguntas importantes à arte contemporânea, porque muitas vezes a arte permanece na sua zona de conforto. Por exemplo, expor quadros num cubo de paredes brancas é como que criar um ambiente isolado do mundo e dos seus contrastes. Ora, a igreja também desafia a arte contemporânea a habitar os lugares da vulnerabilidade, os lugares feridos, os lugares necessários, as periferias. O Papa diz sempre, não se esqueçam dos pobres, não se esqueçam dos mais pobres. E isto é alguma coisa que a igreja pode ajudar, pode colaborar com a arte contemporânea. Porque a igreja tem uma grande experiência de serviço, de proximidade, de conhecimento, da vulnerabilidade, e então pode contribuir para que a arte vá ao encontro do mundo.

O Dicastério a que Vossa Eminência preside tem um grande compromisso no campo da educação. Como podem as instituições educativas contribuir para fazer da cultura um lugar de encontro entre diferentes gerações, credos e tradições?

Este Jubileu da cultura e do mundo dos artistas e do mundo da cultura não esquece a educação. Amanhã, nos museus do Vaticano, nós vamos organizar congresso internacional para pensar a transmissão do código cultural religioso. O que é que acontece? Hoje os públicos mais jovens entram no museu e não conhecem mais a iconografia, aquilo que está representado do ponto de vista religioso. É um património que lhes pertence, porque o mundo pertence aos jovens, mas eles deixaram de ter as chaves culturais que a religião oferece, para entender grande parte da arte, do património, da história musical, da história do pensamento. E este problema de iniciar as novas gerações, transmitir-lhes o código cultural religioso, não é apenas um problema das religiões. É um problema que deve unir a todos. As instituições culturais, os programas educativos, certamente as igrejas, devem fazer uma aliança para que, por exemplo, a Bíblia, que é um grande livro da humanidade, um grande código da humanidade, possa ser conhecido, possa ser apropriado como chave hermenêutica de interpretação do mundo. Então nos museus vaticanos vamos fazer este manifesto educativo para a transmissão do Código Cultural. E é, digamos, uma forma de lembrar também a missão do nosso dicastério, que é no campo cultural, mas também no campo da educação.

Quais são os principais desafios que a cultura cristã enfrenta no momento atual?

Penso que os grandes desafios podemos dizer que são três. Um é o da esperança, porque a patologia número da cultura contemporânea é o niilismo, é o pessimismo. Nós somos vítimas do pessimismo. E é preciso libertar-se deste pessimismo buscando razões de esperança. A esperança é uma palavra muito aberta. Muito aberta. Mas os outros desafios ajudam também a definir esperança. Precisamos colocar a pessoa humana no centro e afirmar a dignidade humana. Essa é alguma coisa que a educação realiza de forma extraordinária. Porque a educação é um recurso, é um instrumento ao serviço da afirmação da pessoa humana. Oferece ao ser humano competências para ser e ser de uma forma integral, assumir-se como protagonista da história. E isso nós precisamos fazer, dar a todos a possibilidade de se tornarem protagonistas da história. E depois precisamos de construir sociedades mais sensíveis. Mais sensíveis à fragilidade, mais sensíveis à espiritualidade, mais sensíveis à arte, à contemplação, ao silêncio. Num mundo ofegante, insone, onde a tecnologia ganha sempre maior liderança, trabalhar a sensibilidade e apostar na sensibilidade é fundamental para criar recursos internos para uma vida equilibrada, para uma vida feliz.

De que modo a Igreja está a lidar com o impacto da digitalização e das novas tecnologias no domínio da cultura, da arte e da educação?

Nós acabamos de publicar, com o Dicastério da Doutrina da Fé, um documento Antiqua et Nova, onde precisamente se pensa o impacto da inteligência artificial em vários campos humanos, nomeadamente no campo educativo.

Temos de olhar para a inteligência artificial em si mesma como bem, como uma grande possibilidade de progresso e desenvolvimento que se abre à comunidade humana, mas também lembrar que a dimensão ética e os limites éticos têm de ser salvaguardados para evitar que a pessoa humana se torne algoritmo manipulado e escravo das próprias máquinas que criou.

Cardeal Toletino
Cardeal Toletino

África

Relativamente à África, e voltando ao que afirmou na conferência de imprensa, que o desejo deste jubileu dos artistas e do mundo da cultura é reforçar a consciência de que a esperança é algo que está ínsito globalmente em todas as culturas, o que tem a dizer sobre esta temática de dar a possibilidade aos artistas, também do continente africano, de se exprimirem, de entrarem nesse diálogo cultural de que falou?

Dos aspetos muito belos deste Jubileu, um é de facto essa dimensão internacional. Mais de cem nações estão representadas, e seja a comunidade lusófona, sejam outros países, por exemplo, do continente africano, estão muito presentes, devo dizer, cada vez mais. Há uma atenção muito grande nos encontros internacionais, à comunidade artística e às culturas africanas. Tem artistas com grande presença internacional, ainda agora na Bienal de Veneza estavam muito representados. O próprio Dicastério tem essa grande atenção. Por exemplo, nós publicamos a revista do Dicastério que se chama Polyedrun e tem sempre um projeto artístico. Nós confiamos a uma artista africana criar o projeto original para esta revista do Dicastério e esperamos sempre mais no futuro que esta relação afetiva e próxima com a África, com os agentes da cultura, com o mundo educativo, uma relação permanente, possa sempre mais fortalecer-se.

Disse na conferência de imprensa que há artistas de Angola e de Cabo Verde. Daqui a poucos dias vai haver, por exemplo, o Fespaco, que é o maior festival panafricano de cinema e televisão que se realiza em Ouagadougou, e perguntamos como enfrentar o desafio de ter uma real representação de outros países. Poderia explicar quais são os critérios de escolha das pessoas que vêm para este jubileu?

O jubileu é uma iniciativa aberta, no sentido que não houve convites. O convite é aquele feito pelo Santo Padre e os artistas e os agentes do mundo da cultura inscrevem-se de uma forma livre. É claro que haverá artistas em todos os jubileus ao longo deste ano. Nós temos uma representação, penso que sobretudo do campo literário, mas acredite que nós temos uma disponibilidade e uma vontade muito grande de envolver sempre mais as comunidades artísticas e educativas africanas nesta relação de caminho com a Santa Sé.

Um dos momentos belos deste jubileu diz respeito aos prisioneiros com a mostra fotográfica, algo que está muito a peito do Santo Padre, como sabemos. De que modo é que esta iniciativa falará aos tantos prisioneiros do mundo?

Penso que esta atenção que o Santo Padre tem dado à realidade das prisões, visitando no seu magistério mais de 20 vezes as prisões e tendo ali, naquele espaço, feito discursos muito importantes, criado verdadeiro magistério, representa para toda a igreja uma grande responsabilidade, para o mundo uma grande responsabilidade, porque as prisões muitas vezes são vistas como lugares invisíveis e o Santo Padre torna-as visível com a sua presença. E da parte das pessoas que estão nas prisões, sem dúvida é uma palavra de consolação e de esperança que o Santo Padre leva sempre.

Eu, por exemplo, tive a graça de acompanhar o Santo Padre na inauguração da Porta Santa na prisão de Rebíbbia e é uma das imagens que não me esqueço. Quando, no final, o Papa Francisco se vinha embora, já no carro, das prisões, porque algumas pessoas vieram à missa, mas outras permaneceram nas celas, e das celas, pelos buracos das janelas, ouvia-se um grito: “Francisco, Francisco, nós te amamos”. E este amor, este afeto quer dizer muito. Quer dizer que quem está numa situação de vulnerabilidade, de sofrimento, a fazer um caminho também justo de justiça, a descontar uma pena, mas que não deixa de ser um ser humano e que tem de ser olhado com esperança. Quem vive essas situações sabe que tem no Papa Francisco um pai, alguém que compreende a sua situação e que é capaz de ir ao seu encontro.

Eminência, voltando à ideia de reavivar a esperança para criar um mundo mais harmonioso, sereno e prometedor para todos. Mas isso é feito também de gestos concretos. Estou a pensar, por exemplo, no que toca a arte, no debate que tem havido nesses últimos anos sobre a restituição de obras de arte ao continente africano, obras que ao longo do período colonial foram adquiridas de forma nem sempre lícita, digamos assim. O Jubileu pode ser uma ocasião para que a Igreja diga alguma coisa nesse diálogo?

A contribuição da Igreja é, já hoje, ajudar a pensar, ajudar a refletir, trazer os temas do diálogo intercultural e da amizade social para o centro da agenda política.

Essa é uma grande ajuda e que certamente nós todos precisamos de refletir mais sobre esses assuntos, procurando escutar todas as vozes e percebendo o grande significado que a arte tem para a pessoa humana.

Já pensou no que fará do todo o manancial que sai desse jubileu, quando o jubileu tiver terminado, o jubileu dos artistas, de modo particular?

É assim, cada um vai levar no seu coração aquilo que viveu. E para o Dicastério, esta experiência de amizade com a arte, com o campo da cultura, de diálogo, é sempre o ampliar da rede e da missão. É isso que contamos, ampliar a rede da amizade e a missão, que é uma oportunidade para o Evangelho.

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05 março 2025, 13:51