People walk in Red Square in central Moscow

Duzentos anos de revoluções na Rússia

A Revolta Dezembrista (ou Insurreição Dezembrista/Decabrista) de 14 de dezembro de 1825 viu os oficiais do exército e os intelectuais favoráveis ​​às reformas liberais tentarem tomar o poder após a morte repentina do czar Alexandre I, para então serem esmagados pela repressão de Nicolau I, ícone da alternância recorrente entre "sistema" e "revolta", regime e anarquia, na trajetória da história russa.

Por Pe. Stefano Caprio*

Nestes dias, sucederam-se na Rússia duas datas muito significativas: em 12 de dezembro foi observado o Dia da Constituição, recordando a lei fundamental aprovada por Boris Yeltsin em 1993, alguns meses após o ataque a tiros contra o prédio do Soviete Supremo, onde parlamentares se barricaram em protesto contra o novo poder pró-Ocidente após o colapso da União Soviética. Foi o ato formal que sancionava o fim do regime comunista, com a transição para uma economia de mercado e a eliminação das instituições de planejamento e controle. Daquele texto restaram hoje apenas os contornos, tendo sido anulados em 2020 pelas mudanças desejadas por Vladimir Putin para consagrar o novo regime soberanista ortodoxo da "vertical do poder".

Já o dia 14 de dezembro marca o bicentenário da Revolta Dezembrista (dezembro em russo é "dekabr"), que em 1925 tentou tomar o poder após a morte repentina do czar Alexandre I, que não obstante aa glória da vitória sobre Napoleão, recusou-se a introduzir as reformas liberais tão desejadas pelos oficiais do exército e intelectuais russos. A revolta foi esmagada pelo novo czar Nicolau I, irmão de Alexandre, que se dedicou exclusivamente à ordem e à repressão na Rússia e em todos os outros lugares, o que lhe valeu o título de "gendarme da Europa".

As duas datas se entrelaçam em uma releitura da história recente e antiga da Rússia, sempre dividida entre os longos invernos das "estagnações" ditatoriais e as explosões primaveris de novas revoltas populares, sem nunca encontrar um equilíbrio entre suas diversas almas. Na conferência sobre os dois séculos desde a revolta, que teve início em Moscou na Academia de Ciências, um dos historiadores mais renomados, Yuri Pivovarov, propõe como chave de interpretação o pêndulo entre samoderzhavie ("autocracia") e samovlastie ("autopoder"), dois termos quase idênticos para indicar a oposição entre "sistema" e "revolta", entre regime e anarquia.

Historicamente, a Rússia tem sido propensa a excessos de contradições, e precisamente a partir da época dos dezembristas, isso se articula em uma série de imagens opostas e sucessivas: da "Santa Aliança" de Alexandre I em 1815 (a primeira "União Europeia") se chega à Guerra da Crimeia de Nicolau I em 1853, com a Rússia que se opõe a toda a Europa, para então viver as grandes reformas de Alexandre II com a libertação da servidão em 1861. Esse ponto de virada seria posteriormente recompensado com 80 tentativas de assassinato contra o czar, que culminaram em sua morte em 1881 pelas mãos de revolucionários, um prelúdio para a ascensão dos bolcheviques ao poder após as revoluções de 1905 e fevereiro de 1917, antes da grande Revolução de Outubro.

Também os setenta anos de comunismo totalitário certamente não foram pacíficos e uniformes; Após a guerra civil de 1918-1920, houve uma longa luta interna dentro do partido, vencida por Stalin em 1930 após eliminar todos os seus oponentes, estabelecendo o regime do terror, posteriormente denunciado durante o "degelo" de  Khruščev em 1957, e substituído por  Brežnev em 1964 com a restauração do controle neoestalinista. Gorbačëv tentou então a "revolução pacífica" da perestrojka em 1986, para depois sucumbir à tentativa de golpe da KGB em 1991, frustrada por Yeltsin, que subiu a bordo de um tanque sob aplausos da população, que no dia seguinte se reuniu para remover o monumento na Praça Lubyanka, sede da KGB, que representava seu fundador, Felix Dzerzhinsky.

Não é surpresa, portanto, que também o regime "democrático" do próprio Yeltsin, inaugurado pelos bombardeios de 1993, tenha se transformado posteriormente em uma série de guerras e levantes na Chechênia, Inguchétia e Transnístria, antes de convergir para a atual ditadura de Vladimir Putin, construída sobre a repressão de manifestações populares organizadas por Alexei Navalny e culminando em guerra contra a Geórgia, a Ucrânia, a Europa, o Ocidente e o Anticristo universal. Da samovlastie yeltsiana, que dava a cada um a oportunidade de se apoderar de "todo o poder que conseguir engolir", retornamos à samoderzhavie de Putin, um sistema de poder que não deixa nenhuma liberdade nem esperança de mudança, até a próxima volta da bússola enlouquecida da Rússia.

É reproposta portanto, a cada vez, a questão que os estudiosos estão analisando nestes dias a propósito dos dezembristas: trata-se somente de reações à insatisfação pelo papel da Rússia na história, ou de idealizações de ideologias capazes de moldar novos sistemas estatais, destinados a mudar a face do mundo inteiro? Esta é hoje a questão, se o putinismo está fadado a definhar e desaparecer, ou chegará a dominar o resto do mundo, a começar pela América do amigo Trump. Os dezembristas eram exaltados pelos soviéticos como o início da grande epopeia revolucionária, para depois serem esquecidos com a instauração do regime putiano, que se ressente de qualquer vestígio de revolta popular.

Contudo, o jovem Alexander Puškin, profeta da redescoberta da alma russa após um século de ocidentalização, também fazia referência ao grupo dos dezembristas. Hoje, ele é tão celebrado pelos russos quanto odiado pelos ucranianos, por ter lhes roubado o primeiro grande poeta e escritor ucraniano, Nikolai Gogol, e tê-lo feito apaixonar-se pela Grande Rússia.

No curso sobre "Fundamentos e Princípios da Estatalidade Russa", agora obrigatório em todas as escolas russas de todos os níveis, assim como as aulas sobre marxismo e materialismo dialético na época soviética, a revolta de 1825 é completamente obscurecida, reinterpretando a história pelas lentes da censura de Nicolau I, a Okhrana, a mãe dos serviços secretos, e chegando até a KGB e o atual FSB, a escola de poder de Putin, e até mesmo do Patriarca de Moscou, Kirill.

Os nobres e oficiais que se reuniram na Praça do Senado de São Petersburgo em 14 de dezembro de 1825 pretendiam precisamente eliminar a autocracia, impedindo Nicolau I de ascender ao trono. Um golpe de Estado preparado durante anos, precipitado pela morte inesperada de Alexandre I na cidade de Taganrog, no sul do país, onde ele havia ido para tratar a esposa.

O desaparecimento do vitorioso czar é um dos grandes mistérios da história russa, tendo ocorrido quando ele tinha apenas 48 anos e sem uma autópsia adequada. A lenda subsequente afirma que o czar se transformou no ancião Fedor Kuzmič, um pregador itinerante da Sibéria, e nenhum regime posterior jamais buscou verificar a verdadeira identidade dos restos mortais sepultados no túmulo da Catedral de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo, junto com os outros czares da era moderna. O túmulo também abriga os restos mortais do último czar, Nicolau II, e sua família, além de outros restos mortais igualmente duvidosos recuperados de valas comuns nos Montes Urais.

A incerteza sobre o destino dos czares e sua memória reflete a necessidade de reescrever continuamente a história russa, o que hoje constitui uma das principais motivações da ideologia soberanista e imperialista do czar Putin. "A Crimeia é nossa", "o Donbass sempre foi russo", o desejo de reivindicar os países bálticos, o Cáucaso, a Ásia Central e talvez outras regiões do mundo, da África à América do Sul, caracterizam uma busca frenética por uma identidade que não está verdadeiramente ligada à terra, mas às esferas superiores do paraíso ideológico. Essa era também a contradição interior de Alexandre I, que, ao entrar triunfalmente em Paris em 1814, acreditava poder reunificar todos os povos e até mesmo as Igrejas, unindo os ortodoxos russos aos católicos austríacos e aos protestantes prussianos na "Santa" Aliança.

A guerra de Putin na Ucrânia remete explicitamente à vitória de Stalin sobre os nazistas, mas não menos significativa é a memória do período posterior às Guerras Napoleônicas, em que a premissa ideológica era precisamente a oposição entre poder absoluto e revolução liberal, entre samoderzhavie e samovlastie. Os dezembristas derivavam, em parte, de uma sociedade secreta formada em Moscou em 1818, a Soyuz Blagodenstviya, "União da Prosperidade", que visava formar um movimento popular de orientação liberal para construir uma sociedade livre de qualquer forma de ditadura e escravidão — um sonho romântico que se repete frequentemente ao longo da história, quase sempre dando lugar a novas formas de autocracia. Os ideais da sociedade liberal pressupunham uma aproximação entre intelectuais e o povo, como ocorrera durante a guerra contra Napoleão, com o encontro entre oficiais e os soldados mais humildes.

Foi o grande escritor russo Ivan Turgenev quem mais tarde descreveu esse encontro em "Memórias de um Caçador", onde o nobre narrador, durante uma caçada, encontra uma série de figuras humildes, como os camponeses Khor e  Kalinič, que vivem na floresta e expressam sentimentos de autêntica dignidade humana. Turgenev cunhou um termo para descrever esses encontros que é novamente amplamente utilizado hoje: o populizm, do latim russificado (o escritor posteriormente inseriu outros termos em seus romances que se tornaram universais, como anarkhizm e nigilizm), profetizando a grande ambiguidade dos tempos em que vivemos no terceiro milênio, entre as ilusões soberanistas dos novos imperadores e as confusões populistas das ideologias artificais, à espera de um mundo novo e de novas revoluções. 

*Pe. Stefano Caprio é docente de Ciências Eclesiásticas no Pontifício Instituto Oriental, com especialização em Estudos Russos. Entre outros, é autor do livro "Lo Czar di vetro. La Russia di Putin". (Artigo publicado pela Agência AsiaNews)

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15 dezembro 2025, 09:16