Damião Carlos da Silva é uma das vítimas afetadas pela extração da sal-gema  (©Maíra Erlich/National Geographic) Damião Carlos da Silva é uma das vítimas afetadas pela extração da sal-gema (©Maíra Erlich/National Geographic)   (©Maíra Erlich/National Geographic))

Imagem entre as melhores do ano expõe tragédia ambiental em Maceió: “Profundas rupturas sociais e emocionais”

Quase 60 mil pessoas forçadas a sair de suas casas. Igrejas, escolas e hospitais fechados. Décadas de extração de sal-gema e um resultado de cinco bairros com afundamento do solo em Maceió, Alagoas, Nordeste brasileiro. Eles viraram bairros fantasmas. Um rosto símbolo das vítimas. Uma fotografia entre as 25 melhores do ano, considerada pela National Geographic, quase dez anos depois do início da tragédia. Um sinal de que os sintomas de colapso ainda continuam a atormentar os moradores afetados

Mariane Rodrigues – Cidade do Vaticano

Maceió, Alagoas, Brasil. Damião Carlos da Silva, vestido com uma camisa verde, chapéu na cabeça, e em seu ombro esquerdo um passarinho, seu amigo de estimação, que parece acarinhar o rosto do alagoano, que ao tocar o animal com a face, fecha os olhos. Uma expressão de ternura e amor entre dois seres vivos que compõem a força da criação. A descrição é de uma fotografia registrada pela fotógrafa pernambucana Maíra Erlich. A imagem foi considerada uma das 25 melhores fotos a nível internacional em 2025 pela National Geographic.

Embora a foto seja marcada pela singeleza da relação entre o homem e a natureza expressada pela interação afetuosa entre Damião e seu passarinho, o contexto por trás dela expõe uma realidade dura para quase 60 mil pessoas que tiveram que sair de suas casas forçadamente por causa do afundamento do solo em quatro bairros de Maceió: Pinheiro, Bom Parto, Mutange, Bebedouro e parte do Farol.

Damião Carlos da Silva é uma das vítimas afetadas pela extração da sal-gema
Damião Carlos da Silva é uma das vítimas afetadas pela extração da sal-gema   (©Maíra Erlich/National Geographic))

A tragédia em Maceió começou a se desenrolar em março de 2018, quando moradores do bairro do Pinheiro – o primeiro afetado – sentiram tremores de terra. Desde então, o solo das ruas e as paredes das residências sofreram visíveis rachaduras que colocaram em risco a permanência das pessoas na localidade. Como um efeito dominó, outros bairros vizinhos também sofreram do mesmo problema. Os moradores desses bairros tiveram que sair e buscar outro local para morar, afetando o direito à moradia e a manutenção do senso de comunidade vivenciada por essas pessoas ao longo de décadas (muitas delas viviam nessas localidades desde o dia que nasceram e suas residências foram passadas de geração para geração).

Análises do Serviço Geológico do Brasil descobriram, então, a causa do problema: atividades de extração da sal-gema realizada por décadas pela petroquímica Braskem, que teve que encerrar as suas atividades no local e indenizar os moradores a nível material e moral. No entanto, até os dias atuais, essas indenizações são alvos de críticas, revisões e recusa por parte dos afetados, que alegam não serem justas para o tamanho do problema que enfrentam até hoje, não só financeiros, como psicológicos, muitos deles sofrendo depressão.

O problema acarretou ainda na desativação de várias instituições – como escolas e hospitais – além de espaços de lazer, e igrejas. Três paróquias foram fechadas, uma delas precisou ser derrubada, afetando a atividade religiosa dos fiéis: Nossa Senhora do Bom Parto (Bom Parto), Menino Jesus de Praga  (Pinheiro – veio ao chão) e Santo Antônio (Bebedouro). Atualmente, elas funcionam em outros bairros, em estruturas provisórias, enquanto se erguem para construir uma estrutura para receber adequadamente os fiéis.

Fotografia que retrata vítima está entre as 25 melhores do ano

Damião Carlos da Silva é uma das vítimas afetadas pela extração da sal-gema
Damião Carlos da Silva é uma das vítimas afetadas pela extração da sal-gema   (©Maíra Erlich)

“Bairros inteiros da cidade costeira de Maceió estão afundando no solo após décadas de extração de sal-gema. A destruição desalojou dezenas de milhares de moradores, como Damião Carlos da Silva, que foi obrigado a se mudar para um abrigo temporário nas proximidades depois de perder sua casa. Ele encontra consolo nos preciosos momentos da vida, como este compartilhado com seu pintinho de estimação”. A descrição está em inglês no site da National Geographic, ao relatar a vida de Damião.

Segundo a fotógrafa Maíra Erlich, Damião é morador de uma comunidade chamada Flexal. Essa comunidade está localizada entre os bairros desativados, mas não foi colocada como zona de risco pela Defesa Civil de Maceió para que os moradores se retirassem e recebessem indenização. Mas eles lutam para serem amparados, inclusive judicialmente, porque vivem em situação de isolamento social, já que todos os serviços públicos do local precisaram ser encerrados, dificultando o acesso desses moradores aos seus direitos mais básicos: como escola, hospitais e transportes públicos.

Os caminhos da fotógrafa Maíra e de seu Damião se cruzaram em 2023, quando ela viajou a Maceió para registrar o colapso de uma das minas que havia sido usada pela Braskem para extração de sal-gema. Por causa desse colapso, alguns moradores que ainda restavam na região – a exemplo de Damião e família – precisaram ser levados para um abrigo temporário: uma escola.

Fotógrafa Maíra Erlich documentou tragédia por dois anos.
Fotógrafa Maíra Erlich documentou tragédia por dois anos.   (©Pablo Albarenga)

Damião morava numa pequena vila de pescadores, composta por casas de maneira à beira de uma lagoa, descreve a fotógrafa. Maíra foi até essa escola e lá conheceu a esposa de Damião e sua filha. Ele se recusou a ir para o abrigo. O motivo, segundo ela: Damião não queria deixar para trás seus animais de estimação.

“Depois a esposa dele voltou para casa. Antes mesmo do colapso se concretizar, elas foram removidas da escola para voltar para casa. Eles moravam nesse barraco de madeira que eles sentiam muitos tremores porque era muito próximo da mina e a estrutura da casa era bem nas estacas, bem na beira da lagoa”, descreve ela.

“A partir de então eu mantive esse contato com eles. Todas as vezes que eu voltei para Maceió, eu ia visitar eles e sempre falo com eles também pelo WhatsApp, em chamada de vídeo. Então, de todo mundo que eu documentei, eles foram as pessoas que eu mais me aproximei, mais me me conectei, mais me comuniquei também e mais visitei. A gente foi construindo essa relação ao longo desses últimos dois anos”, comenta a Maíra.

Maíra em uma das casas esvaziada por causa das rachaduras.
Maíra em uma das casas esvaziada por causa das rachaduras.   (©Pablo Albarenga)

Damião é pescador e a esposa dele, Luzia, é catadora de Sururu, uma iguaria da Lagoa Mundaú, em Maceió. Segundo Maíra, eles não trabalham mais na área. Ela afirma que a família alega que a mineração afetou  a captura dos mariscos realizada por Luzia e a pescaria de Damião. “Em  abril, eles foram obrigados a sair de casa. Moravam há mais de 20 anos nessa casa e eles tinham um espaço enorme, quase um sítio, super fresco, onde podiam criar vários animais: cavalo, porco, coelho, gato, cachorro, galinha”. A vida anterior permitia, continua ela, com que ele tivesse uma relação muito íntima com os animais, como a vista na foto.

Maíra realizou outros tantos registros nos bairros afetados. Foram dois anos de documentação. “Eu fui percebendo que, cada vez que eu visitava Maceió, alguma coisa já tinha mudado. Novas ruas já estavam bloqueadas, o próprio Google Maps foi deletando algumas ruas do seu mapa. Eram mais tapumes e cada vez mais casas sendo demolidas.  A última vez que eu fui, os prédios estavam sendo demolidos também. Deixaram por último e estavam começando já a demolir a parte do Bebedouro. Eram dois anos onde nada mudava para as pessoas fetadas. O pessoal do Bom Parto, por exemplo, continua lá com as casas já rachadas e ninguém aparece para para oferecer uma alternativa para eles. pessoal do Flexal também e a paisagem da cidade mudando”, testemunha Maíra.

Maíra em um dos bairros afetados.
Maíra em um dos bairros afetados.   (©Pablo Albarenga)

A percepção das transformações na cidade por causa do afundamento do solo não era só visível aos olhos. Maíra fala tamgbém dos relatos “muito fortes” e “tristes”. “Desde gente que tem sofrido com ansiedade, com depressão, com insônia, como também pessoas que moram na área de borda do Mapa [de risco] que perderam os vizinhos da frente relocados. Então a pessoa vive ali com ansiedade e ao mesmo tempo numa situação meio perigosa, porque toda a área de frente da sua casa está abandonada e demolida e você ficou. Por que é que meu vizinho estava em perigo e eu não estou?”, pontua a fotógrada.

Ela lembra também dos comerciantes que perderam, aos poucos, os seus clientes, que precisaram fechar seus negócios dos quais sustentavam a família e se sentiram obrigados a reconstruir a vida em outro lugar. “Gente com 70 anos tendo que reiniciar a sua vida, assim. E famílias que foram separadas. Gente que morava décadas na mesma rua, no mesmo bairro e não tiveram condições. O mercado imobiliário aqueceu muito e encareceu muito com esse grande volume de realocação. As pessoas não conseguiram viver a mesma situação que viviam antes. Ainda mais sem a indenização, sem pagamento justo perante todo esse sofrimento”, relata a fotógrafa.

"Rupturas emocionais, sociais e territoriais"

Três bairros inteiros e um parcialmente se transformaram em locais fantasmas.
Três bairros inteiros e um parcialmente se transformaram em locais fantasmas.   (©Itawi Albuquerque)

Desde fevereiro de 2025, a Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2, junto com a Cáritas arquidiocesana de Maceió, realiza um projeto de formação de lideranças e coletivos com os atingidos pelo afundamento do solo.

Para a assessora técnica da Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2, Marilene Ozana Marculino da Silva, essa “tem sido uma experiência significativa”.  O objetivo é a reparação dos danos morais coletivos, em parceria com o Programa "Nosso Chão, Nossa História".

O trabalho da Cáritas, instituição e braço humanitário da Igreja Católica, consiste na mobilização dos moradores por meio de visitas técnicas às instituições onde eles estão atualmente, além de promoção de rodas de conversas, momentos de escutas e oficinas às lideranças por meio de cursos: oficina de reparação de danos morais e extrapatrimoniais; de produção de projetos sociais e comunitário; oficina de abuso sexual; de economia popular solidária; e formação de lideranças, que são coletivos, associações, Ongs, organizações da sociedade civil que atuavam nesses territórios, incluindo as igrejas.

“A Cáritas vem com uma grande missão de ofertar a formação das lideranças, mobilização para que elas se organizem, criem suas instruções, se formalizem e concorram a editais na busca por reparação de danos morais coletivos e de direitos humanos”, afirma Marilene.

Segundo ela, mesmo quase oito anos depois do surgimento das primeiras rachaduras, observa-se que muitas famílias permanecem marcadas por             “profundas rupturas sociais, emocionais e territoriais”. Isso porque, elas não tiveram só que deixar um espaço físico, mas perderam suas comunidades, vizinhanças e referências que foram construídas ao longo de décadas. “Houve mudanças forçadas de vida, deslocamentos para bairros desconhecidos, perda de vínculos comunitários e desestruturação das redes de apoio que garantiam proteção e pertencimento”, enfatiza a assessora técnica da Cáritas.

Marilene ressalta que, embora eles tenham recebido indenizações pelas perdas materiais, a maioria as considera irrisórias diante da gravidade dos danos não materiais sofridos. “Danos que não se medem apenas em perdas materiais, mas também na perda do jeito de viver, da história e da identidade territorial”, comenta ela.

Foto da Mercearia São Licolau - Bairro do Bom Parto
Foto da Mercearia São Licolau - Bairro do Bom Parto   (©Itawi Albuquerque)

Assim, ela ressalta que as lacunas que ainda vigoram na vida das famílias atingidas são muitas, como as emocionais e psicossociais: “Ruptura com a história de vida e identidade dos bairros, o que gerou sensação de desenraizamento. Luto prolongado pela perda do território, da vizinhança, da memória coletiva. Sentimentos de injustiça e abandono por parte do poder público e da empresa responsável. Ansiedade e insegurança quanto ao futuro, especialmente entre idosos e mulheres. Perda dos espaços de convivências como igrejas, praças, escolas e equipamentos sociais”, enfatiza ela, algumas dessas lacunas.

Ainda hoje, prossegue Marilene, muitas famílias enfrentam: instabilidade financeira, mesmo após indenizações. Aumento de despesas nas novas moradias. Dificuldade de acessar trabalho próximo aos locais onde foram reassentadas. Pequenos comerciantes perderam clientela e não conseguiram recompor a sua renda e falta de informação qualificada sobre processos de reparação e direitos. “A Cáritas enquanto Igreja vem fazendo escuta, fortalecendo o cuidado e o acolhimento, fazendo mobilização e articulação social, contribuindo para que as famílias se reconheçam como sujeitos de direitos e reconstruam laços comunitários”.

Laudato Si’

O cuidado com o meio ambiente está intrinsicamente ligado à fé cristã. Deus confiou o mundo ao ser humano e a vida humana é uma dádiva, que precisa de proteção. Mas cuidar do mundo requer “mudanças profundas nos estilos de vida”, não só em termos individuais, mas nas mudanças nos meios de produção e consumo e nas estruturas de poder já consolidadas. É como pensava Francisco, que expôs isso na Laudato Si’, documento publicado em 2015, que evoca o cuidado com a natureza e o meio ambiente. 

Para Francisco, destruir as coisas da natureza é um pecado contra Deus, porque também é um crime cujas vítimas e algozes é o próprio ser humano.

“Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas úmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar… tudo isso é pecado ». Porque « um crime contra a natureza é um crime contra nós mesmos e um pecado contra Deus ».”

Francisco convida na Laudato Si’ cada um dos fiéis a se aproximar da natureza e a contemplar o ambiente que o rodeia. “Se nos aproximarmos da natureza e do meio ambiente sem esta abertura para a admiração e o encanto, se deixarmos de falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo, então as nossas atitudes serão as do dominador, do consumidor ou de um mero explorador dos recursos naturais, incapaz de pôr um limite aos seus interesses imediatos”, considerou.

 

 

 

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08 dezembro 2025, 11:43