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Cardeal Odilo Pedro Scherer - arcebispo metropolitano de São Paulo Cardeal Odilo Pedro Scherer - arcebispo metropolitano de São Paulo  

Cardeal Scherer: Fome outra vez

A ONU reconhece que a alimentação adequada é um direito humano fundamental, a ser assegurado a todas as pessoas, uma vez que é indispensável à sobrevivência. No Brasil, esse direito também foi posto na Constituição e está garantido pela Emenda Constitucional n.º 64, de 4 de fevereiro de 2010.

Cardeal Odilo Pedro Scherer - arcebispo metropolitano de São Paulo 

Estudos sobre a segurança alimentar no Brasil dão conta de que, em 2022, cerca de 58% dos brasileiros enfrentavam alguma situação de insegurança alimentar e nutricional, o que significa alimento insuficiente e de baixa qualidade. Destes, 15,5% conviviam com a fome, o que corresponde a cerca de 33 milhões de pessoas. O problema é mais acentuado em 18,6% de domicílios rurais, que convivem diariamente com a fome. Quase a metade dessa população com fome vive nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil.

A fome está diretamente relacionada com a questão do trabalho e do nível da renda. Como pode assegurar uma alimentação minimamente adequada a família ou o domicílio com renda inferior a um quarto de salário mínimo por pessoa? Os diversos benefícios sociais apenas conseguem mitigar essa situação, sem, contudo, resolvê-la. A pandemia de covid-19 agravou ainda mais este quadro preocupante. Mas, depois dela, a fome persiste e até se agravou. Mesmo se a fome não consta oficialmente como causa mortis de tantas pessoas, aquelas que dela padecem podem sofrer consequências graves, como a subnutrição crônica, danos ao desenvolvimento físico e intelectual e a fragilização da saúde, que marcam o resto de sua vida.

O problema não é somente brasileiro, mas mundial. Em alguns países da África e da Ásia, está relacionado com a baixa produção de alimentos, a desertificação, guerras e a grande concentração populacional. Mas não precisaria haver fome em nenhuma parte da Terra, que tem capacidade de produzir alimentos em quantidade abundante para nutrir toda a população mundial. Por quais motivos, então, existe o flagelo da fome? Em 2014, o papa Francisco lamentou, diante da 2.ª Conferência Internacional sobre Nutrição: “É doloroso constatar que a luta contra a fome e a subnutrição seja dificultada pelas prioridades do mercado e a primazia do lucro, que reduziram os alimentos a uma mercadoria qualquer, sujeita a especulações, até financeiras”.

A ONU reconhece que a alimentação adequada é um direito humano fundamental, a ser assegurado a todas as pessoas, uma vez que é indispensável à sobrevivência. No Brasil, esse direito também foi posto na Constituição e está garantido pela Emenda Constitucional n.º 64, de 4 de fevereiro de 2010. O problema está na efetivação desse direito humano fundamental. Nosso país voltou a figurar no mapa da fome, e isso não deveria deixar ninguém indiferente. Estamos muito longe de alcançar a meta da eliminação da fome no mundo até 2030, um dos objetivos do milênio.

Neste ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escolheu novamente o tema da fome para a Campanha da Fraternidade. É pela terceira vez que o faz nos 60 anos da campanha: 1975, 1985 e 2023. A fome de nossos semelhantes interpela nossa consciência e a qualidade de nossas relações sociais e fraternas. Na comemoração dos 75 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o papa Francisco observou em seu discurso: “Para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha” (16 de outubro de 2020).

O lema escolhido para a campanha – “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16) – traz as palavras de Jesus aos apóstolos no final de uma jornada. Ele está cercado de muita gente cansada e faminta e os apóstolos pedem que ele despeça a multidão, para que as pessoas vão para casa e se alimentem. Mas Jesus surpreende os discípulos com esta ordem: “Não precisam ir. Dai-lhes vós mesmos de comer”. Alguém, então, lhe apresenta cinco pães e dois peixes, mas o que seria isso para tanta gente? Jesus manda distribuir o pão e o peixe à multidão. Todos se fartam e, no fim, sobra muito mais do que havia no início (cf Mt 14,13-21).

Milagres assim acabariam logo com a fome no mundo! Mas, para fazê-los, só mesmo Jesus. Com seu exemplo, no entanto, ele nos deixou preciosas indicações, capazes de ajudar a resolver o problema. Antes de tudo, não ficou indiferente diante da fome do povo nem o despediu para que se arranjasse sozinho, mas assumiu como próprios a preocupação e o sofrimento da multidão faminta. A indiferença diante do sofrimento alheio mata, antes mesmo que a fome. Ensinou, também, que a urgência da fome se resolve mediante a partilha. Sozinhos, não conseguiremos. E a partilha precisa ser promovida mediante políticas públicas e iniciativas generosas de cada cidadão, para proporcionar trabalho, geração de renda, produção de alimentos, acesso a eles e o socorro a quem padece de fome.

No final da narração da multiplicação dos pães e dos peixes, há um detalhe que poderia passar despercebido, mas é importante para o nosso tema: quando todos ficaram saciados, Jesus mandou recolher os restos que sobraram, para que nada se perdesse. E foram recolhidos bem 12 cestos cheios do precioso alimento (cf Mt 14,20). Com a eliminação do desperdício de alimentos, daria para saciar quase todos os que passam fome no Brasil. Quase uma terça parte do alimento produzido é desperdiçada. Que fazer para diminuir esse desperdício e, assim, também a multidão faminta?

Publicado originalmente no jornal O ESTADO DE S. PAULO em 11 de fevereiro de 2023 

Fonte: Arquidiocese de São Paulo

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