Souleymane Cissé - Um monumento do cinema africano
Dulce Araújo - Vatican News
Não obstante a situação de insegurança que está a viver devido à luta contra o terrorismo, o Burkina Faso continua a apostar na cultura e, de modo particular no cinema como elemento fundamental de crescimento humano e de afirmação da própria identidade e soberania. Nesta senda realizou a 29ª edição do FESPACO, Festival de Cinema e de Televisão de Ouagadougou - FESPACO, de 22 de fevereiro a 1 de março de 2025 sob o lema "Cinema e identidade cultural". E não se tratou absolutamente duma edição menor - afirma o cineasta e produtor moçambicano, Pedro Pimenta, membro do Comité de Seleção dos Filmes para o Festival. Ele considera mesmo que o vazio deixado pela repentina morte daquele que devia ser o presidente do júri das LM, Souleymane Cissé, que conheceu e pelo qual tinha muita estima, foi gerido dignamente. Cissé era movido pelo desejo de fazer do cinema um instrumento de dignificação da África e da sua cultura, como frisa, por sua vez, Filinto Elísio, poeta e editor (Rosa de Porcelana Editora) na sua crónica sobre o cineasta maliano, realizador de Yellen, entre outros filmes.
A África de língua oficial portuguesa - PALOP - esteve representada no FESPACO 2025 por realizadores da Guiné-Bissau, de Cabo Verde e de Moçambique com LM de ficção e documentários em concurso. Para Pedro Pimenta foi muito positivo, até porque há um ar fresco que vem do cinema desses países. Mas de forma geral, considera que algo de novo está a acontecer com o cinema em África, com novidades que chegam do cinema ruandês, e também da diversificação da cooperação para a produção de filmes, o que deixa maior margem criatividade aos cineastas. Conhecedor do mundo das produções, Pedro Pimenta considera que para ter uma maior soberania no sector, a África terá de ter algum fundo próprio para impulsionar o seu cinema.
O prémio principal do Festival, o Étalon de Yennenga, foi ganho pelo renomado cineasta burkina-bé, Dany Kouyaté, com o filme "Katanga" acerca do qual, Pedro Pimenta faz uma análise elogiosa.
Na entrevista para o programa "África em Clave Cultural: personagens e eventos" deste dia 13/3/2025, Pedro Pimenta fala ainda da coragem que move os habitantes do Burkina Faso, determinados a lutar pela paz no país e que vivem o seu dia-a-dia sem renunciar nem sequer à sua bienal de cinema - o FESPACO, aliás financiado em 60% pelo Estado. Uma raridade em África, no mundo. Um exemplo a imitar.
Leia a sua crónica sobre Souleymane Cissé
"Souleymane Cissé: um monumento do cinema africano
Souleymane Cissé, o cineasta maliano, um dos pioneiros do cinema africano, faleceu no passado dia 19 de fevereiro em Bamaco, aos 84 anos. O cineasta estava nas vésperas da apresentação de dois prémios, antes do Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Ouagadougou, conhecido como FESPACO, em que seria o presidente do júri este ano.
Segundo o ministro da Cultura do Mali, Souleymane Cissé era um "monumento do cinema africano", autor de obras emblemáticas do cinema africano, através de filmes políticos, humanistas, sociais e fantásticos que marcaram a Sétima Arte.
Nasceu em 1940 no Mali, no seio de uma família muçulmana. Na adolescência, fez o ensino secundário em Dakar, no Senegal. Desde então foi atraído pelo cinema, acompanhando o irmão em projeções. Em 1961 a sua paixão transforma-se em vocação, depois de assistir a um documentário sobre o assassínio de Patrice Lumumba, o líder político da República Democrática do Congo. Uma verdadeira epifania para o futuro cineasta.
Com uma bolsa de estudos, foi estudar em Moscovo, na Universidade Estatal Russa de Cinematografia, que impulsionaria a sua carreira como um dos grandes da história cinematográfica africana. Aliás, quando terminou seus estudos de cinema em 1969, havia passado apenas três anos do lançamento de A garota negra (La noire de...), filme de Ousmane Sembène que é considerado o primeiro longa-metragem feito por um realizador negro africano.
Em 1970, Cissé retornou para o Mali, dando início efetivamente ao trabalho com cinema, primeiramente como operador de câmara e repórter, realizando filmes no interior do país para o Serviço Cinematográfico do Ministério de Informação, para depois ingressar na carreira de cineasta e, posteriormente, de produtor, ao fundar, em 1977, a companhia Les Films Cissé (Sisé Filimu).
Cissé dirigiu seu primeiro longa-metragem, “Den Muso” (A Jovem), em 1975. O filme, falado na língua bambara, conta a história de uma adolescente muda que engravida após ter sido violada e, em seguida, rejeitada pela própria família. As autoridades malianas censuraram esse filme e o cineasta foi por algum tempo preso, sob falsas acusações.
O filme "Baara" (O Porteiro - 1978) conta a história de uma revolta de trabalhadores malianos, enquanto "Finyé" (O Vento - 1982) narra a história do amor frustrado de dois jovens malianos, tendo como pano de fundo uma revolta estudantil.
"Waati" (O Tempo - 1995) acompanha a viagem de uma criança negra que deixa a África do Sul para atravessar o continente, da Costa do Marfim ao Mali e à Namíbia.
Cissé alcançou fama mundial com o lançamento, em 1987, de “Yeelen” (Luz, em 1987). O filme venceu o Prémio do Júri em Cannes e foi indicado ao prémio de Melhor Filme Estrangeiro pelo Spirit Awards de 1989. O cineasta americano Martin Scorsese considerou este filme como uma das grandes experiências reveladoras na sua vida como espectador de cinema.
O seu último filme foi “O Ka” (A Nossa Casa), de 2015, o quinto de sua carreira. O filme conta a história do despejo forçado de suas quatro irmãs de sua casa de infância pela polícia no ano de 2008.
Em 2023, o Festival de Cannes prestou-lhe mais uma homenagem com o Carrosse d’Or (Prémio Carruagem de Ouro), pela parte da Sociedade de Realizadores de Filmes da França. Foi o segundo cineasta africano a receber tal distinção, depois de Ousmane Sembène, que a recebera em 2005.
A sua carreira de 50 anos foi dedicada a promover a África, um tempo mediado por vários prémios, incluindo por duas vezes o Étalon d'or de Yennenga, o Grande Prémio do Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Ouagadougou e o Prémio do Júri no Festival de Cannes, feito até então inédito na história do cinema africano.
A sua intenção fora criar um repertório de imagens e histórias que se contrapusessem aos estereótipos negativos sobre a sua cultura produzidos ao longo da dominação colonial. Ele apontava o contexto da luta contra a dominação colonial como origem central de seu desejo de tornar-se cineasta.
Mais do que fazer cinema, Souleymane Cissé pretendia recontar histórias como forma de abrir horizontes, de falar dos desafios e das belezas da África, e de lutar, através do cinema, contra as desigualdades que marcam a realidade do continente africano."
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